terça-feira, 12 de julho de 2011

Mais um tesouro perdido - André Forastieri


forasta 1 ok Mais um tesouro perdido (ou: por que volto hoje a anotar meus sonhos)
Desperto de um sonho. Meio da noite. A Frase está fresca na memória.

Frase que eu disse do lado de lá, que saiu pronta dos meus lábios, um epíteto, quase um provérbio. Levanto para tomar água e encafifo: como é possível sonhar com uma Frase tão perfeita, completa, definitiva?
Repito mentalmente cada sílaba, uma, duas, várias vezes. Amanhã no primeiro momento escrevo, reflito, publico, decido me enfiando debaixo dos lençóis.
Minutos atrás, não são oito e acordo outra vez. Meu primeiro pensamento é na Frase. Onde está? Evaporou. Evanesceu. Escafedeu-se. A faísca brilhante pertencia só ao outro lado da minha consciência? Não era artefato que sobrevivesse à luz do dia? O tesouro se fez areia e me escapou pelos dedos. Não acredito em sorte e azar; creio em preparo e execução, e me faltaram.
Frustrado recordo Jorge Luis Borges, e tantos escritos inspirados pelas lembranças de seus sonhos e pesadelos. Ao despertar, como fazia para anotar? Ditava a Maria Kodama? Ela deitava ao seu lado? Ou Borges seria discípulo de Ramon Lull e esculpia em sua mente cada palavra, usando a Arte da Memória? Cego, não tinha a facilidade que eu, quando decidi anotar meus sonhos.
forasta 2 ok Mais um tesouro perdido (ou: por que volto hoje a anotar meus sonhos)
Guardo duas folhas de papel amarrotado dentro de uma caixinha de badulaques, no meu criado mudo. A letra é arabesca, até para o meu padrão de garranchos. Contém anotações que fiz meio dormindo, como "Alan Moore não usa máquina de escrever" e "Joe Strummer Navy Seal". Faziam sentido quando rabisquei, no escuro ou na primeira claridade da manhã. Hoje quase nenhum. São fios de recordações. Mas o amuleto, no escuro da gaveta, me conforta e me faz companhia durante o sono.
Agora voltarão bloquinho e a caneta para debaixo do abajur. Não farei como o quadrinista Rick Veitch, que durante anos registrou graficamente seus sonhos na série Rarebit Friends. São mesmerizantes - leia alguns agora, aqui.
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Meus passeios do lado de lá não serão matéria para criação artística ou literária. Nem farei como esses megalomaníacos terapeutas americanos que ensinam os incautos a programar seus sonhos. Que me interessam sonhos pré-programados?
Não deixo mais escapar outro tesouro fugidio. Volto hoje a anotar meus sonhos. Por quanto tempo? Só o suficiente para perder de novo uma nova Frase impossível.

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