O nome de Ama – Castello di Ama é um nome conhecido na região de Chianti Classico, centro da Toscana, o vinho da civilização dos anos quinhentos, e com certeza ainda o vinho da civilização dos anos dois mil. Muito se passou ali, guerras fomes e prosperidade, mas sempre a arte esteve no centro das preocupações dos toscanos. A propriedade que hoje se chama Castello di Ama fica em Ama, um antigo vilarejo que agrega outras pequenas vilas, tudo hoje sob o mesmo guarda-sol, administrado pelo enólogo Marco Pallanti. Ele esteve em São Paulo esta semana e almoçou no Rio na quinta feira. Como enólogo, é um experimentador. E por isso mesmo, um colecionador de arte moderna. O que tem a ver?
Vigneti e vinhedos - A propriedade expõe no alto da colina obras de arte contemporânea, inclusive uma capela assinada por Aneesh Kapoor. Os vinhedos refletem essa paixão pela forma e pela individualidade de cada um. Dois dos mais belos exemplos de tintos toscanos, com base na uva sangiovese, vêm de vinhedos impecavelmente tratados, o La Casuccia e o Bellavista. Mas um se distingue plenamente do outro. O mais famoso dos vinhedos que podemos chamar de individualista é o Vigna L'Apparita , em espetacular empreendimento que Pallanti fez com merlot, plantado em forma de lira, como é a tradição na região de Pometol, na França. Mas esta época dos vigneti de uvas estrangeiras acabou. Nos vinhedos, agora, domina a sangiovese nativa.
Clássico dos chiantis – A degustação de anteontem começou com um branco de mais de 80% de chardonnay. E aí vocês vão me perguntar qual a novidade disso. Chardonnay? Sim, mas com 20% de Pinot Grigio, para dar um toque italiano a um branco sem pretensões. Pallanti explica: a Toscana não é célebre por suas uvas brancas, que não passam de aceitáveis, como a trebbiano e a malvasia. Delas não se pode fazer um vinho de que depois de falem maravilhas. Por isso a tentativa com a pinot grigio, que se seguiu a várias outras e deu certo. Mas o carro chefe da casa, o Castello di Ama 06, encantou a mesa, com sua textura sedosa, o traço firme do terreno, o sal da terra e a certeza de muitos anos em garrafa.
Lago de vinho – A crise assusta os italianos, mesmo os que fazem vinhos que se vendem, como é o caso de Marco Pallanti, de Paulo de Marchi (dono do Isole e Olena, outro chianti impecável) e do próprio Giuseppe Mazzocolin, produtor da lendária Fattoria Di Felsina, que nos visitou na semana passada. Marco fica perplexo diante da pergunta óbvia: como os pequenos produtores vão escoar a quantidade de vinho que fizeram nos últimos anos, na onda da bolha de consumo inflada pelos mercados orientais? Os preços dos vinhos de nicho garantido estão elevados. Os outros, os pequenos, estão deprimidos, como na França, onde o sistema de notas dos críticos americanos tira das vendas boa parte da produção regional. A equação é complicada.
Burocracia infernal – Como se não bastassem as dificuldades dos importadores, agora uma novidade vai fazer tudo ficar mais complicado e mais caro. O Governo decidiu que toda garrafa de vinho importado vai ter que ser selada. É um selo, um imposto, colado à rolha transversalmente. Isso significa que importadores e distribuidores vão ter que abrir suas cargas, e manualmente, garrafa por garrafa, afixar mais essa criação da burocracia nacional. Que no passado, aliás, já existiu, é uma relíquia em alguns países. Um tremendo retrocesso. O custo será repassado ao consumidor - vai ser necessário contratar gente para o serviço. Mais um obstáculo na gincana infernal dos impostos.
Mais Piemonte – No tempo em eu não tomava vinhos bons, muito menos italianos – sim, esse tempo existiu, aí uns 20 anos atrás – costumava passar por cartazes e anúncios de revista com um nome então famoso, Pio Cesare. Uma azienda (em italiano, a palavra que designa propriedade rural, fazenda produtiva). Estava entre os tradicionalistas, hoje mudou de direção pilotada por Pio Boffa. Tem impressionante linha de belos barolos e barbarescos, além de uma lista de esplêndidas barberas. Os vinhos desfilaram pelo Rio e por São Paulo na semana passada.
Poder das barberas – Uma degustação bem equilibrada no Giuseppe Grill do Leblon reuniu o moderno chardonnay L’Altro, vinho de saudação, sem mais. Logo se passou às barberas – talvez dentre as melhores que eu tenha provado em muito tempo. A casa faz três, os três valem a pena. O Barbera d’Alba, o Barbera d’Asti e o Barbera Fides, este um vinho de elegância e densidade, que chega aos 14 graus e vem de terrenos calcáreos do vinhedo Colombaro. Fides em latim significa confiança. Nome apropriado.
Bandeiras antigas – O centro da degustação são, claro, os barolos e os barbarescos, a tradição da casa. O Barolo que eles chamam de normale vem dos vinhedos em Serralunga d’Alba, entre os vilarejos de Castiglione Faletto e Serralunga d’ Alba, os melhores terrenos para a uva nebbiolo. Mas a casa Pio Cesare não dispensa, como nenhuma outra ali, o amadurecimento em carvalho – 36 meses, sendo 30% em carvalho novo e 70%, maior parte da produção, em botti, tonéis tradicionais, de carvalho Allier de muitos anos de idade.
Chegada da modernidade – O que se verificou nessa degustação foi a evolução - dentro de um padrão de respeito às uvas nativas e ao terreno único na Europa, aquele sopé de monte que se estende de Alba a Turim. O que vai ser lamentado pelos saudosistas e festejado pelos modernistas, e não faltam defensores do estilo americano e mesmo entre as quietas colinas piemontesas. Ouço dizer que Clerico, Sandrone, Pio Cesare, Prunotto, Vietti e Braida são nomes ao alcance do consumidor brasileiro quando se trata de barbera, o mais acessível a nós. Todos eles tocados pela magia da modernidade. Posso assinar embaixo do nome Vietti – um vinho pleno, extremo às vezes, rigoroso em relação à terra onde foi feito.
Barolos e barbarescos – Não podia deixar de falar os barolos e dos barbarescos – testados esta semana da casa Pio Cesare, mas testados também ao longo do ano. São vinhos de difícil abordagem. Depois que o curioso, o descobridor, começa a experimentar vinhos tintos logo descobre – ou não logo, mas pelo menos ao longo de uns 10 anos – que a maioria é feita da mesma forma, com uvas testadas e aprovadas pelo mercado internacional. São clones bem feitos de uvas viníferas plantadas em Bordéus, Bordeaux para os íntimos. Mas isso quer dizer pouca coisa. O mundo redescobre as uvas nativas não exportadas em clone, as barberas, as tourigas, mesmo as syrahs. O mistério da uva e do vinho está na terra. Que se a deixe falar. Tem muito a dizer.
Riesling versátil – Um amigo me pergunta o que servir com um frango ao curry que acabou de fazer para convidados. Um frango ao curry é uma receita simples, mas aqui entre nós não muito divulgada. Confesso que dei uma olhada nas referências, naqueles livrinhos e revistas que nos ajudam. E lá está: o vinho indicado é o Gewurztraminer, de preferência da Alsácia, francês. Existem Rieslings da mesma região que cumprem esse papel, mas é preciso que tenham credenciais impecáveis. Como o do Domaine Weinbach, de Madame Colette Faller, lendária e ainda ativa com suas duas filhas numa propriedade modelo.
Também para carnes - Insisto na uva riesling porque dela se extrai um vinho que acompanha quase tudo, da entrada à sobremesa. Pena que aqui ela ficou sinônimo de vinho alemão ruim, aqueles Liebfraumilch de triste memória, feitos a partir de qualquer uva branca que se plantava na Alemanha nas décadas de 60 e 70. Era a época de “um dólar a garrafa” - assim os negociantes do ramo se entendiam a respeito desse vinho que nem vinho era, fabricado com a cumplicidade das autoridades de Bonn (a capital da época). Os Rieslings de hoje são feitos para cada tipo de prato. Até para as caças existe um belo Rheingau capaz de ganhar com o tempo de guarda.
Brancos de 2008 – Todo mundo se queixa dos preços dos Borgonhas brancos, tidos como os melhores do mundo. De fato o são, e existe uma forma de contornar os preços. Chassagne-Montrachet e Puligny-Montrachet são dois vilarejos célebres pelo nome, mas ali por perto se encontram vinhos da categoria mais abaixo, os Villages, que podem ser uma boa surpresa, sobretudo em 2008. Foi uma safra salva na última hora, quando já se acreditava que não ia dar grande coisa. Os Meursaults vizinhos, por exemplo, pegaram mau tempo na época da colheita e não se podem comparar. O importante na hora da escolha é o nome do produtor. De qualquer forma, com esses nomes, prepare o bolso.
Na dúvida, os clássicos – O que combinar? Esta é a pergunta que mais se faz entre apreciadores de vinho, mesmo os mais experimentados. A multiplicação dos chefs e das receitas é em parte responsável por essas dúvidas. A cada dia surge um novo ingrediente, feito de forma moderna ou inusitada. Tudo pode acontecer. Na dúvida, vamos nos lembrar das combinações clássicas. Ostras com Muscadet. Foie-gras com branco licoroso. Pratos cozidos de porco do tipo chucrute e embutidos com Riesling. Pernil de cordeiro com Bordeaux da região de Pauillac. Quiches com Pinot-blanc, da Alsacia francesa ou Itália. Pratos de carne com molhos ricos, Châteuneuf-du-Pape. Pato, Borgonha tinto.
Não-ortodoxos – Tão importante quanto esses clássicos aí de cima são as combinações não-ortodoxas. Já me deliciei com ostras regadas a Pouilly-fumé, Sancerre e até brancos da Áustria, como os de Prager da região do Wachau. Da mesma forma, para o salmão, o Riesling é obrigatório, mas, se o prato tiver algum preparo de cozinha, um Chablis Premier Cru vai fazer maravilhas. Aliás, os Chablis com as ostras e demais crustáceos, se for bem seco, vai ficar bem afinado. Um bacalhau cozido simples com tinto do Douro e uma daquelas boas quintas (Vale Meão, Crasto, Fojo, de la Rosa e as demais, todos caros) pode ser um repasto de deuses.
Até com curry – Alguns ouvintes pediram ao Sardenberg e a mim que sugeríssemos harmonização para pratos condimentados com curry. É um tempero indiano antigamente difícil de conciliar com vinhos. O argumento era cultural - não havia tradição no subcontinente que justificasse a combinação. Hoje esses preconceitos caíram, diante da força do mercado londrino, o maior entreposto de vinhos - e uma das cidades onde mais se encontram restaurantes de comida indiana. A resposta é um branco de personalidade aromática, com os rieslings franceses ou alemães. E um gewurztraminer para os pratos em que a presença do chutney seja mais sentida.
Para o bacalhau – Os portugueses sempre festejaram a Páscoa com tintos. Do Dão, Ribatejo, Alentejo ou Douro. Esses últimos são os preferidos dos especialistas porque a qualidade das uvas varia menos e a tradição é mais longa. Claro, o preço também é mais alto. O que parece a primeira vista se chocar com quaisquer vinhos - sobretudo se o eleito for um branco - é o excesso de cebola e alho que algumas receitas trazem, sem cerimônia. Em Lisboa ficou na memória um almoço pascal de bacalhau com natas - e um tinto do Ribatejo, de uvas locais, com predominância a da touriga nacional. A harmonização não podia ter sido melhor.
De volta aos chablis – Se existe um vinho conhecido que tenha perdido qualidade ao longo do tempo esse vinho é o chablis, região a sudeste de Paris, onde muitos produtores ganharam essa denominação sem merecê-la. Nos últimos 15 anos a recuperação foi notável. Dauvissat, Albert Pic e Ravenau são alguns nomes que hoje valem muito em qualquer mercado - e que fazem vinhos feitos para durarem. Eu acrescento à lista dos famosos Billaud-Simon, que se pode encontrar em São Paulo. Mas, sobretudo, os chablis premiers crus da cooperativa La Chablisienne. Um dos raros casos em que uma cooperativa alcança em muitas safras melhor qualidade que os produtores individuais. O Mont de Milieu 06 é obra-prima.
Longevidade – A propósito do tempo de guarda dos borgonhas (o chablis é um borgonha tecnicamente, mas não geograficamente), é preciso cuidado quando se passa dos dez anos. Ainda ontem abri uma garrafa de um branco Beaune premier cru 06 que tinha perdido o viço. Nos brancos, a safra de 2002 deixou saudade em muita gente. Ainda existem garrafas do Domaine Leflaive e do Domaine Ramonet que se encontram apenas em leilões e podem ser esplêndidos. Mas a maioria dos produtores pensa em intervalos de tempo que não ultrapassem os cinco ou seis anos, mesmo nos tintos. Só os bordeaux tintos e os brancos do Loire vivem muitas décadas.
Resposta nos preços – A região do Loire, o maior rio da França, é talvez a mais variada entre todos os terrenos vinícolas - porque são vários terrenos a cada trecho de Rio. E várias denominações. Sancerre, Pouilly Fumé, Topraine, Vouvray, Anjou, Saviennières, Coteaux du Layon, Quarts de Chaume. Os vinhos desses lugares são simplesmente a melhor relação qualidade-preço no mercado internacional. Uma das razões é a baixa procura, porque os importadores não conhecem as origens, nem os produtores locais têm estrutura para exportar. Por enquanto só os parisienses tomam conhecimento deles. Uma questão de custos de frete - e de ligação cultural. Os antigos reis moravam nos castelos do Loire.
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