O que beber com esse calor
Os vinhos brancos são a resposta óbvia, mas não a única. Não, claro que não, mas quem tem uma adega, um aparelho para manter os vinhos em temperatura ideal? Estive observando nos restaurantes e bares. A garrafa fica muito tempo dentro do balde com gelo. Na maioria das vezes, demais. Passa do ponto em que o vinho - estamos falando de brancos - se explique, libere seus aromas e, se for de alguma qualidade, pode encantar pessoas à mesa. Nesse calor, vinhos brancos? Não obrigatoriamente. Há tintos frescos, na Itália, na França e na Alemanha que vão dar conta do recado. Sem contar os rosados de procedência de Portugal, da Argentina e do Chile, cujo único problema - e isso é facilmente verificável - é a gradação alcoólica impressa no contrarrótulo.
Terras não conhecidas
Andei provando tintos do Rio Loire, que fica no centro da França. Depois faz uma curva e corre para o litoral oeste. O brancos, todo mundo que gosta do assunto conhece, os sancerres, os poulllys-fumés, os muscadets, mesmo os touraines da uva sauvignon blanc - uma das glórias da cilicação vinícola. Mas eles levaram muito tempo para ter uma posição no mercado. Pois os tintos do Loire são um fenômeno. Duram bem mais do que uma década. Provei com um grande ex-produtor Charles Joguet (que já passou as operações a uma empresa de grande porte), tintos redondos que se assemelhavam a belos borgonhas. São da uva caberbnet-franc. E isso é uma carteira de identidade.
Ainda no Loire
Os muscadets, a propósito, são o vinho indicado para esse verão inclemente. Os do casal Hardy, distribuído no Rio pela Nova Fazendinha e estrelando as estantes do Garcia e Rodrigues no Leblon, são, como e se esperava dos 2009, frescos e ao mesmo tempo concentrados. Alguém vai dizer que possam ser concentrados demais. Mas é que os melons de bourgongne, a uva muscadets como lá é chamada, está a léguas da Borgonha, é bem tratada vai dar uma certa untuosidade - justamente necessária para os frutos do mar. É um vinho de mar, de ostras, de vieiras, de lagostins, quem sabe de lagostas se as houver. Quem foi, foi, quem não foi, não foi, dizia meu amigo Haroldo. E os muscadets não passam por madeira, estão aí, gloriosos.
Vinhos de inverno
Se me demoro nessas descrições de vinhos brancos e frutos do mar é porque voltei faz muito pouco da capital da França, onde a temperatura estava abaixo de zero. Vocês pensam que um frio assim vai deter as pessoas em casa ou em seus hotéis? Não. Ao contrário. É a época dos frutos do mar, dos frios iodados, dos ventos do norte. É a época em que as pessoas tiram os agasalhos do armário e vão, com bota e tudo, aos restaurantes maiores, às grandes brasseries, como são aqui as nossas churrascarias, e se deixam levar pela alegria da temporada. Nada mais sociável, aproximativo, aconchegante mesmo, que os invernos muito rigorosos. Eles juntam as pessoas, ao longo, ao lado e ao largo de uma garrafa de vinho.
E o verão?
E vocês devem estar se perguntando: o que faz esse louco falando de inverno quando a gente aqui está fritando acima de 35 graus? Que vinho tomar? Como acompanhar um almoço "al fresco" com dizem os italianos, sem ficar de mau humor porque o calor é opressivo? Os rosados chegaram, são servidos a temperatura de brancos, quer dizer a 10 a 12 graus, regam qualquer receita e alegram quaisquer desejos. Há rosados feitos na Espanha, em Portugal, na Argentina e, claro, no lugar de origem, o sul da França. Convém não esquecer. Um rosado ao entardecer pode tornar a ocasião um capítulo de livro.
Os lugares escondidos
Acabo de voltar de uma degustação - de um estudo, na verdade - de uma região conhecida nos livros e nas revistas, mas muito pouco provada. O Piemonte, ao pé dos Alpes italianos, não muito longe da cidade de Turim. Os piemonteses fazem talvez o melhor vinho tinto da Europa depois da Borgonha. Sei que isso pode gerar uma discussão interminável. O importador que me abriu esses segredos tem outros. E que enorme é a escolha do consumidor brasileiro. São vinhos italianos, franceses, espanhóis, sardos, sicilianos, portugueses - de que antes pouco ou nada se ouvira falar. Fiquei contente de encontrar entre os piemonteses o velho Pio Cesare, um barolo honrado, uma barbera apreciada, que frequentaram estantes nobres outrora. E estão aí.
Uma uva, uma bandeira
O que tem os piemonteses a mostrar hoje nesse mundo competitivo dos vinhos? Uma uva. É o que buscam espanhóis, argentinos, chilenos, húngaros, alemães. Cada um deles encontrou, pela ordem: tempranillo, malbec, carmenère, furmint, riesling. Cada país, cada terreno exibindo com orgulho o seu produto como se fosse único ou, ao menos, como se ele ali fosse melhor. E nada indica que não o sejam. No caso dos italianos, eles levam vantagem sobre esses novos concorrentes. Tem mais de 200 variedades de uvas reconhecidas, outras 200 ainda por analisar. Entre elas a nebbiolo do Piemonte, de que eu falava acima. É uma uva de clima frio, de sopé de montanha, de terrenos que precisam de belos verões - e invernos quietos.
John Wayne e Mastroianni
O mais conhecido produtor de vinhos piemonteses, Angelo Gaja, uma vez me contou a história que descreve a diferença entre as uvas ditas internacionais como a cabernet-sauvignon e as regionais como a nebbiolo. Como todos os modernos da época - estamos falando dos anos 70 - Gaja plantou cabernet sauvignon no Piemonte. Estudou o comportamento de ambas, a estrangeira e a nativa. E resumiu, num almoço inesquecível em São Paulo: "Cabernet é como John Wayne - forte, decidido, você sabe o que ele vai fazer e do que é capaz. Nebbiolo é assim como Marcelo Mastroianni - nunca se sabe bem se gosta ou se não gosta, se quer ou se não quer... é difficile". Nada mais exato.
O fator acidez
O que distingue as duas não é certamente a capacidade de maturação. Ambas são longevas, e como. Das cabernets temos os exemplos de garrafas de Bordeaux que duram mais de quatro décadas. Dos barolos e barbarescos piemonteses temos exemplos de 20 anos, às vezes mais, que conservam vigor, sabor, complexidade. A diferença talvez esteja no uso da madeira e na qualidade intrínseca da fruta. Bordeaux é um vinho de mistura, portanto compensado. Quando um dos lotes - uma das quatro uvas que o compõem - não está com taninos macios, faz-se a mistura, faz-se a receita. No Piemonte, ou o nebbbiolo está macio ou não. Depende da safra. Do sol. Do tempo. Do produtor. Resulta disso tudo um vinho mais ácido? Aparentemente. Mas só aparentemente.
Quais os nomes
E de que barolos e barbarescos estamos falando, pois se são estes os vinhos que exprimem melhor a profundidade da uva nebbiolo? Entre os barbarescos, certamente os de Angelo Gaja, o Sori Tildin e o Sori San Lorenzo; dos que provei com mais fartura - o que neste caso quer dizer muito pouco - cito Bruno Giacosa, Mocagatta, Ceretto e Albino Rocca. Dos gloriosos barolos, o Gaja que mudou de nome - agora se chama Sperss - Aldo Conterno, Bruno Giacosa, Giuseppe Mascarello, Pio Cesare, Brovia e Vietti, entre outros aos quais certamente não estou fazendo justiça. São vinhos densos, aromáticos, ásperos às vezes, inconfundíveis na sua mineralidade e austeridade características. Custam uma fortuna. É provar ou provar.
Redescoberta toscana
Já mencionei aqui neste CBN Express que os toscanos se tornaram de novo orgulhosos de seus produtos, entre outras coisas porque não permitem tipos de agricultura estranhos à tradição regional. Agora mais ainda, quando os vinhos supertoscanos, uma imitação da moda estrangeira - justamente esses - perdem terreno para os produtos tradicionais que foram redescobertos. Explico melhor: durante muito tempo, digamos, uns 30 anos, os toscanos procuraram imitar os vinhos franceses e californianos, plantando uvas internacionais e adotando técnicas importadas. Deu certo. Fizeram os supertoscanos, que até hoje valem um bom dinheiro. Mas se a gente falar com um produtor toscano hoje ele vai exaltar a riqueza nativa, a uva sangiovese, uma das bandeiras da Itália.
Os teimosos
Alguns produtores italianos se renderam ao canto da sereia internacional com certa relutância. É o caso da Fatoria d Fèlsina, de Giuseppe Mazzocolin, que esteve em São Paulo e no Rio na semana passada e cujos vinhos se tornaram uma referência de qualidade nos catálogos de importados. O Chianti Classico Fèlsina sempre foi uma boa relação qualidade-preço. O Riserva mais ainda, já que se tratava das melhores uvas sangiovese de uma fazenda que era de fato uma fábrica, uma "fattoria", onde as pessoas que ali trabalhavam ali moravam. Até hoje, me diz Giuseppe, é assim. A "fattreria" contionua uma velha fábrica entre as colinas florentinas e as colinas de Siena," i colli senesi" - e os vinhos de um lado e de outro traduzem essa diferença sutil.
Distinção
E o que distingue a uva sangiovese das demais? Por que os italianos durante tanto tempo a ignoraram e vêm agora cobrar preços elevados, para dizer o mínimo, por vinhos da região de Chianti Classico que antes não valiam grande coisa? É justamente a característica de acidez desses vinhos, que combina as maravilhas com a comida. Se me perguntassem hoje qual o vinho mais gastronômico que existe, eu certamente responderia que é um tinto italiano, seja da região de Chianti Classico ou da região do Piemonte. Nenhum vinho compõe melhor as harmonias exigidas pela comida e pelo momento. Um vinho, como uma nota e um sabor, é um instante. Um momento. E os italianos sabem disso.
Reservas e vini santi
Desde sempre, nessas colinas toscanas e sienesas, os produtores souberam separar o que é bom do que é comum. E o que é comum do é mau. Daí veio a expressão riserva, que caracteriza a qualidade e o preço dos melhores. E quando se faz um bom reserva, descobre-se que sempre se pode fazer melhor. Misturam-se as melhores uvas dos melhores vinhedos e ninguém sabe mais sobre isso do que o produtor que os planta. Giuseppe separou o Chianti Classico Riserva Rancia e o Fontallloro para os especialistas. Eles vão saber distinguir um e outro. Estão ambos entre as expressões mais refinadas da sangiovese. As experiências de Fèlsina com cabernet-sauvignon se esgotam no excelente Maestro Raro. Que se apaga diante do vinho de sobremesa da fábrica, o Vin Santo, pequena obra prima.
Uma prova piemontesa
Tive que interromper os devaneios toscanos para provar vinhos do Piemonte, essa região a noroeste da Itália, vizinha da França, fechada e tão orgulhosa quanto as demais. Foi uma experiência breve com um dolcetto d'Alba de Giuseppe Mascarello, que ofuscou todas as lembranças que eu tinha desse tipo de vinho. A última vez que um deles me deu uma impressão inesquecível foi com o inesquecível Araujo Netto, nosso colega de Roma, que partiu tendo provado comigo belos vinhos que ele bem conhecia. Mas não era um Mascarello, que não se acha em Roma. Aqui o temos, em Blumenau, São Paulo e Rio, um dolcetto 07 que obriga a gente a comer mais, infelizmente.
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