O encontro da cerveja e do vinho na mesa do boteco era inevitável. Já há alguns bares investindo no fermentado de uvas e até importadoras se dedicando a vinhos com um perfil amigável (e preço também) para serem bebidos sem pompa e com petisco.
Marcamos um embate, o especialista em cervejas do Paladar Roberto Fonseca (o Bob) e eu, na mesa do Pirajá. Já sabia que o vinho não tinha muita chance, a cerveja conversa desde sempre com os pastéis. Além disso, sem familiaridade com o repertório desses cardápios, levei um grupo de vinhos que tentava cobrir os estilos mais comuns da bebida. Não estou chorando a derrota. Houve até uns bons momentos para os vinhos, em especial os brancos sem madeira e com boa acidez. Mas, como diria o rei inglês da peça de Shakespeare cumprimentando o vencedor depois de uma derrota dolorosa: 'O dia é vosso'. O dia foi das cervejas. Abaixo conto um pouco de cada combinação ou choque entre vinhos e petiscos. Ressalto o trabalho da nova importadora Abflug, cujo Sauvignon Blanc El Descanso, o mais simples (há outro reserva, menos pungente), a R$ 26, produzido pelo excelente Eduardo Chadwick no Chile, foi o único realmente gostoso com a comida de boteco.
Branco
O Sauvignon Blanc foi bem, principalmente com os salgadinhos mais cremosos, como a empada e os croquetes. Sua acidez foi agradável com a massa e o volume mastigável de ambos. Já com o sal das azeitonas, não deu conta. Pedi, num lampejo de esperança, um cálice de Jerez Fino - e ele se saiu melhor. Com as frituras, oscilou. Ficou gostosinho com o frango, embora sem brilho, mas da linguiça picante perdeu feio. Pastel de carne e Sauvignon Blanc até que foi um bom encontro, mas até eu acho que soa pedante pedir um Sauvignon e dois pastéis
Rosé
O vinho rosado, delicado (escolhi um bem ligeiro), não se saiu bem. Conseguiu um pouco de protagonismo com as empadas e croquetes, que eram mais adocicados na massa, mas perdeu feio das frituras mais potentes, do picante da linguiça, e ficou sem graça com os demais. Outra aposta equivocada. Pensei que seria bom, pois é para beber gelado e matador de sede, mas nisso as cervejas ganharam
Tinto pesadão
Não frustrou minha previsão: já sabia que ele seria inadequado. E foi. Seu peso e corpo intensos, sua quase doçura alcoólica e a madeira muito evidente foram um choque negativo com todos os pratos. As frituras e o sal acentuaram seus taninos um pouco duros, e nem era um vinho tânico, mas um Malbec bem típico, daqueles superconcentrados, quase vinhos do Porto secos e macios. Não deu. Tintos carnudos e boteco não são bons companheiros
Verde
Foi a boa surpresa. Um simples verde português, com sua característica agulha, deu certo com todos os pratos. É geladinho e tem a leve presença de borbulhas. Sua acidez típica enfrenta sal, pimenta e fritura. Se posso fazer uma brincadeira, é um vinho com alma de cerveja, o que explica o desempenho
Tinto leve
Levei um Beaujolais - e foi minha maior decepção. Jurava que sua fruta evidente, boa acidez e taninos delicados seriam um bom curinga. Além de ser um tinto que fica bem quando frio. Engano. O vinho fracassou com quase todos os pratos. Ficou mais tinto que devia, mostrou uma musculatura que não cabia e sobrepujou os sabores. Só fez um papel decente (mas inútil, diante das outras opções de bebida) com o frango
Weissbier
A cerveja escolhida para o embate com azeitonas verdes é peculiar dentro do estilo: a Appia, da Colorado, leva mel em sua receita. A boa presença do ingrediente e do trigo fez frente ao salgado das azeitonas, mas não chegou a criar um terceiro sabor na boca. Ficou a curiosidade de testar a combinação com uma weissbier mais cítrica. Entre os vinhos, o verde parece ter conseguido se sair bem. Empate técnico entre os dois
Dunkel
O estilo, que costuma apresentar boas notas de chocolate, toffee e café, proporcionou uma das combinações mais interessantes da degustação com o croquete de pernil. As notas torradas e adocicadas da Falke Ouro Preto deram mais complexidade ao recheio de carne. Venceu fácil. Como opção mais fácil de ser encontrada, há a Eisenbahn Dunkel
Pilsen
O estilo escalado para a harmonização com a empada de palmito pedia uma dose maior de amargor - leia-se: bem maior do que a de muitas 'louras geladas' que se autointitulam pilsen no mercado. A holandesa Christoffel Blond, porém, pareceu demais para a combinação: suas notas de malte até casaram bem com a massa da empada, mas o lúpulo e o amargor se sobressaíram demais no resultado final. Quem sabe uma versão alemã do estilo, com um pouco mais de malte e menos de lúpulo, se saísse melhor. Ou, do mesmo país, uma helles. Entre os vinhos, o verde conseguiu criar um equilíbrio maior neste caso
Stout
O 'adversário' era, possivelmente, o mais forte da noite - frango à passarinho - e pedia um duelo à altura. Por isso, a cerveja escolhida foi uma stout mais forte do que a tradicional Guinness: a Baden Baden Stout, com seus 7,5% de teor alcoólico. Embora suas notas torradas e de café tenham feito algum contato com a crosta do frango, ela se provou forte demais para o prato. Mais suave, a Guinness talvez tivesse melhor desempenho. Entre os vinhos, porém, o que mais chegou perto de um bom 'samba' foi o rosé, mas pecou pelo destaque demasiado do álcool. Veredicto: nessa disputa, não houve vencedores
Altbier
Em princípio, insinua-se como a combinação perfeita com a porção de linguiça: o malte caramelo casa bem com a carne; o amargor combate a gordura do petisco; e o lúpulo chega a 'temperá-lo' um pouco mais. Mas, após algum tempo na boca, aquele amargor acaba se sobressaindo um pouco demais. A altbier, estilo alemão originário da cidade de Dusseldorf, teve como representante na degustação a receita da Bamberg,
de Votorantim
Tripel
Protagonizou a combinação mais interessante da degustação com o bolinho de bacalhau. Suas notas cítricas e condimentadas, complexas, complementam o sabor do recheio do peixe e chegam a criar certa sensação de maresia. A marca utilizada nesta harmonização, a belga Tripel Karmeliet, é referência do estilo no mundo. Venceu com boa margem, seguida, em segundo lugar, pelo vinho verde
Brown ale
O estilo, representado na degustação pela americana Brooklyn Brown Ale, mostrou-se bastante versátil. Não só criou um bom equilíbrio com o pastel de carne, fornecendo a ele notas de chocolate e torrado, como ainda saiu em auxílio da Altbier na combinação com linguiça, pela aproximação das notas torradas do malte e do petisco. Nos dois casos, foi superior aos vinhos. Curiosidade, a Brooklyn foi criada pelo mestre-cervejeiro Garrett Oliver, um dos mais famosos especialistas em harmonização de cervejas no mundo