Esse texto foi destaque da edição de 6ª feira, 13 de agosto, do jornal O Popular, na coluna 'Pela Boca', escrita por Breno Faria. E, fala sobre vinho da cosa nostra. Vamos ao texto. Interessante.
- O homem sempre procurou se inebriar. Vinicius de Moraes dizia que a humanidade, sóbria, estaria duas doses de uísque abaixo do ideal. Não que tenha absoluta razão, com o desconto de toda licença poética e de um certo grau de dependência que nosso poetinha exprimia. Mas, no sentido amplo da palavra, a sobriedade irrestrita é mórbida. A música, as artes cênicas, as piadas, as paixões, as amizades, os transes hipnóticos, as religiões são, na verdade, formas distintas de o homem afastar-se da certeza da inexorabilidade da vida.
Podem reparar: não há ninguém mais chato que os sérios, aqueles que só conversam assuntos de "relevância". As drogas, lícitas ou ilícitas, surgiram desta necessidade humana de se abstrair da denotação fria da realidade. Algumas têm efeitos catastróficos a nossa saúde, causam dependência psíquica, física, matam. Outras são toleráveis em quantidades responsáveis - como o álcool, por exemplo.
E o que Jerez, Porto, Madeira e Marsala têm em comum?
Nos mapas, são nomes de unidades geopolíticas europeias, banhadas pelas águas do mar na Espanha, em Portugal, na África e na Sicília (Itália), respectivamente. Para a enologia, além disso, são vinhos fortificados, ou seja, vinhos que recebem, durante seu processo de produção, adição de uma ou outra bebida destilada que, assim, têm o seu teor alcoólico final elevado. Uma terceira coincidência entre eles é que todos ganharam fama mundial por esforço dos ingleses - sim, este povo de gastronomia parca e inexpressiva.
A Sicília não tem só a "cosa nostra". Os "novos" vinhos sicilianos têm ganhado fama ao redor do mundo pela sua potência e qualidade. Mas o Marsala é um dos antigos. Vinho siciliano, homônimo da cidade nesta região do sul da Itália, o Marsala ganhou fama mundial por meio de comerciantes britânicos que lá aportaram em meados do século 18. O vinho já era fortificado e lembrava muito os seus homólogos espanhóis e portugueses, o que, de cara, agradou aos ingleses, ávidos consumidores daqueles. Atribuiu-se a John Woodhouse, um mercador e enófilo inglês, a "invenção" da receita do Marsala. É claro que a perenidade da bebida, quando acrescentada do álcool fortificante, foi fundamental para as intenções do "criador", que a conduzia com vida até os ávidos paladares nativos em terras longínquas. O processo de produção, ratificado (ou "inventado") por Woodhouse, era semelhante ao que já faziam os espanhóis, ainda que estimulados pelos próprios ingleses, e pelos mesmos motivos. Chamavam-no, em latim, de in perpetuum, e, para alguns tipos, era o método solera, do Jerez, rebatizado. Sir Woodhouse ganhou fama, admiração e dinheiro - e seu nome ficou grafado no mundo todo como o pai da bebida.
As principais uvas que compõem o Marsala são as autóctones Grillo, Catarratto e Inzolia, varietais brancas italianas. Essas varietais representam a etapa de fermentação da bebida, que depois é fortificada com aguardente vínica (mistela) e/ou adocicada com o mosto cozido (mosto cotto). Os diferentes tipos são classificados de acordo com a cor, concentração de açúcar, graduação alcoólica e maturação a que se submetem.
O Marsala Oro tem seu nome obviamente derivado das uvas brancas de que exclusivamente deriva. O Ambra (âmbar) recebe a adição do mosto cotto e, portanto, de pigmentos mais escuros pelo cozimento açucarado que lhe é acrescentado. Há os ruby, feitos das uvas tintas, também autóctones (quem já ouviu falar??), Pignatello ou Nerello Mascalese.
Quanto à idade, o Fine é o tipo mais comum, geralmente utilizado apenas para fins culinários (sim!, há várias receitas na culinária mundial que carregam o sobrenome Marsala). O Superiore passa pelo menos dois anos no carvalho; o Riserva, quatro anos; o Vergine, de cinco a sete anos; o Solera, passa por processo semelhante ao Jerez, e o Stravecchio amadurece por pelo menos dez anos no carvalho. Nenhum deles tem menos de 17% de graduação alcoólica, o que os rotula como vinhos fortificados - cuidado com os excessos! Como os espumantes de Champagne, há variantes quanto ao açúcar residual - secco, semi secco e dolce -, em ordem crescente de doçura.
Isto tudo veio depois, um bom tempo já passado desde que Sir Woodhouse aportara em solo siciliano. Sedentos e entediados nas longas milhas de navegação, os marinheiros compatriotas procuravam algo que os distraísse das intermináveis e repetitivas ondas dos mares, que durasse e resistisse ao balanço intrépido e ao tédio do tempo. Muitos acreditavam que era o amor. Outros apostaram no vinho. E é por isso que há, sempre, perdedores e vitoriosos nesta vida.
No glossário do vinho, autóctones são todas as variedades de uvas viníferas cultivadas exclusivamente em uma região ou país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário